Quero ver qual será o futuro posicionamento do STF...
Sobre a constitucionalidade do aborto do feto com microcefalia
Por Daniel Sena. Professor de Direito Constitucional
A recente epidemia do Zika vírus que nos últimos meses já se alastrou por vários países no mundo reacendeu a discussão no Brasil acerca da possibilidade de aborto dos fetos com microcefalia. Em 2012, tema semelhante foi discutido no STF por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 a qual discutia a descriminalização do aborto de fetos anencefálicos.
Apesar do apelo de várias instituições religiosas e contrárias a prática do aborto, o Supremo, por maioria, julgou procedente a ação declarando a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, I e II, do CP. Desde então, seguindo a decisão do Tribunal Constitucional, a prática do aborto dos fetos anencéfalos está autorizada no Brasil.
Observando bem, é possível perceber a semelhança da colisão dos direitos nos dois casos: direto a vida do feto e direito a dignidade da pessoa humana da mulher.
No julgamento do aborto anencefálico, o STF reafirmou que o direito a vida não goza de status absoluto, haja vista a própria Constituição Federal ter limitado este direito prevendo expressamente a aplicação da pena de morte no Brasil. Além deste limitador, a legislação penal também traz hipóteses que excluem a tipicidade da prática de aborto todas as vezes que a vida da mãe correr risco de perecer durante o parto ou nos casos de estupro:
Art. 128 do Código Penal – Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
O que o STF fez foi ampliar o rol de possibilidades da prática do aborto priorizando o direito a dignidade da mulher além de proteger os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde.
Ora, se considerarmos esses mesmos direitos fundamentais das mulheres, é forçoso aceitar que estariam em risco diante da criminalização do aborto do feto com microcefalia. Essa posição encontra apoio inclusive nas Organização das Nações Unidas pois no dia 5 de fevereiro de 2016 o Alto Comissário da ONU para direitos humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein, defendeu os direitos humanos das mulheres ao afirmar ser essencial uma resposta eficaz por parte dos governos diante grave situação de emergência causada pelo vírus zika e sua relação com o aumento de casos de microcefalia:
“Garantir os direitos humanos é essencial para uma resposta de saúde pública eficaz, e isso requer que os governos assegurem a mulheres, homens e adolescentes o acesso às informações e serviços de saúde sexual e reprodutiva de qualidade, integrais e acessíveis, sem discriminação. Os serviços de saúde devem ser prestados de forma que garanta o consentimento plenamente informado de uma mulher, respeite sua dignidade, assegure sua privacidade, e seja sensível a suas necessidades e perspectivas. As leis e políticas que restringem seu acesso a esses serviços devem ser revisadas com urgência, conforme as obrigações de direitos humanos, visando a garantir na prática o direito à saúde para todas e todos.
A professora e antropóloga da Universidade de Brasília, Debora Diniz, que em 2012 participou ativamente no convencimento do STF acerca da necessidade de liberação do aborto anencefálico, já afirmou em entrevista a BBC Brasil, que está preparando uma ação para pedir ao Supremo que autorize o aborto de fetos com microcefalia, desde que associadas ao zika vírus.
É inevitável que essa discussão irá parar no STF e que em breve tenhamos mais um julgamento de extrema relevância para a sociedade brasileira. Enquanto isso não ocorre, penso que a discussão deva ser alimentada em todos os setores da sociedade.
Sob a perspectiva constitucional e de preservação dos direitos humanos, encontro razão no posicionamento do Supremo tribunal Federal quando do julgamento do aborto do feto anencefálico. Defender cegamente o direito a vida do feto é ignorar uma realidade social no Brasil de que muitas mulheres praticam abortos em instituições clandestinas ou até mesmo sozinhas, sem nenhum acompanhamento médico o que resulta em consequências muito piores do que a descriminalização do aborto.
Descriminalizar o aborto não significa incentivá-lo. Quem deseja praticá-lo o fará de qualquer jeito. É de conhecimento público que os mais prejudicados nesta história são as camadas mais pobres, que realizam o procedimento de interrupção da gravidez sem qualquer acompanhamento médico colocando em risco, não só a vida do feto, mas a da própria mãe.
A prevalência do direito da mulher em situação de gravidez de risco, no caso da anencefalia, ficou muito clara no julgamento da ADPF 54. Além de estar alinhado aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, encontra amparo na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. Veja este excerto do Informativo 661 do STF:
Definiu como violência todo ato ou conduta baseada no gênero que causasse morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública, como na esfera privada (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher). Nestes termos, não se coadunaria com o princípio da proporcionalidade proteger apenas um dos seres da relação, de modo a privilegiar aquele que, no caso da anencefalia, não deteria sequer expectativa de vida fora do útero e aniquilar-se, em contrapartida, os direitos da mulher ao lhe impingir sacrifício desarrazoado. Sublinhou que a imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final seria irremediavelmente a morte do feto iria de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional, mais precisamente à autodeterminação, à saúde, ao direito de privacidade, ao reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Esclareceu que a integridade que se colimaria alcançar com a antecipação terapêutica de uma gestação fadada ao fracasso seria plena e que eventual direito à vida do feto anencéfalo, acaso existisse, cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde (CF, artigos 1º, III, 5º, caput e II, III e X, e 6º, caput). Por derradeiro, versou que atuar com sapiência e justiça, calcados na Constituição e desprovidos de qualquer dogma ou paradigma moral e religioso, determinaria garantir o direito da mulher de manifestar-se livremente, sem o temor de tornar-se ré em possível ação por crime de aborto. ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)
Uma questão importante e que deve pesar no julgamento é o fato de a microcefalia por si só não ser letal em todos os casos. Diferentemente da anencefalia, cuja expectativa de vida não ultrapassa os primeiros meses após o nascimento, a microcefalia pode causar a morte, contudo, na maioria dos casos, causará deficiências motoras e mentais. Apesar de ser uma doença sem cura, uma criança com microcefalia, se receber tratamento adequado com apoio de fonoaudiólogo, terapeuta, fisioterapeuta e neurologista, poderá ter uma vida como qualquer outra criança com deficiência.
E aqui entra outra discussão. Com o aumento dos casos de microcefalia ,que segundo o Ministério da Saúde, já ultrapassam 3000 casos de suspeita da doença associada ao zika vírus, a grande preocupação da comunidade médica é da ausência de estrutura de saúde por parte do poder público tanto na prevenção da doença quanto no tratamento posterior ao nascimento que deverá ocorrer durante toda a vida do indivíduo. O Estado mal consegue gerenciar a carência atual de saúde, quanto mais se vivermos um surto de qualquer doença. E quem será o grande atingido por essa falta de estrutura? As camadas mais pobres da sociedade.
Qualquer discussão que envolva esse assunto, precisa ser norteada por uma visão ecossistêmica da situação. É preciso considerar o aspecto legal, sem abandonar o viés social de uma possível descriminalização do aborto nestes casos. Defender a proibição do aborto dos fetos com microcefalia sem considerar as consequências do nascimento desta criança para a sociedade e para família, é tapar o sol com a peneira.
Em uma sociedade madura, decisões como essa são tuteladas a própria mulher em respeito a sua autonomia de vontade, atributo intrínseco da dignidade da pessoa humana. Só ela conhece as condições que terá para criar o filho. Só ela pode decidir. Se fôssemos uma sociedade organizada e com estrutura de saúde adequada, nem estaríamos tendo essa discussão, pois não teríamos o surto da doença. O aumento dos casos de microcefalia nos últimos meses só atesta que o estado brasileiro não possui qualquer condição de arcar com essa situação. Trata-se de um ônus que resultará em consequências bem piores para a sociedade, para a família e para a criança que possui a doença.
Vejo como salutar a discussão, mas de antemão deixo externada a posição que acompanha a evolução dos direitos humanos no mundo. Os direitos fundamentais são históricos exatamente por se transformarem com o passar do tempo. Novas situações sociais requerem novas normas. Uma doença que se alastra com tanta rapidez, sem qualquer previsão de contenção para os próximos meses requer um tratamento emergencial e diferenciado por parte do Poder Público. Pelo menos por hora, vejo com bons olhos, a descriminalização do aborto nos casos de microcefalia. Isso reduziria drasticamente a evolução da doença e suas consequências sociais. Contudo, como é da natureza do direito, não se trata aqui de uma visão absolutista, mas sim de uma posição que merece ser considerada durante a discussão do tema. E o que importa mesmo, é que a epidemia seja controlada e que os direitos humanos sejam protegidos sempre.
Bibliografia:
BRASIL. Constituição Federal de 1988.
BRASIL. Código Penal Brasileiro.
BRASIL. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Notícia sobre aumento de casos de microcefalia disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/22202-microcefalia-casos-em-investigacao-chegam-a-3-935-no-pais. Acessado em 17/02/16.
STF. Informativo 661 do Supremo Tribunal Federal disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo661.htm. Acessado em: 17/02/16.
BBC. Entrevista acerca do assunto disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160131_entenda_aborto_microcefalia_ss_lab . Acesso em: 17/02/16
ONU. Declaração do Alto Comissário da Organização das Nações Unidas sobre o surto do Zica Virus disponível: https://nacoesunidas.org/defender-direitos-das-mulheres-e-essencial-para-a-resposta-ao-zika-diz-onu/ . Acesso em: 17/02/16