Princípio das dietas hiperprotéicas – Conceito de energia líquida
O organismo é um sistema termodinamicamente instável, que não pode se manter sem um fornecimento contínuo de energia.
Esta é produzida pela decomposição dos alimentos, que consiste em hidrólise de macromoléculas – proteínas, amido, lipídeos – em unidades menores – aminoácidos, glicose, ácidos graxos – por sua vez decompostos em moléculas diretamente implicadas na produção de energia – piruvato, acetil-coenzima A.
A energia liberada por estas reações não é utilizada diretamente, mas deve ser estocada pelas células sob uma forma facilmente disponível: a molécula de ATP, cuja hidrólise (quebra da ligação ADP-Pi) produz de 13 a 18 kcal.
Todas estas reações de degradação dos alimentos também formam alguns subprodutos metabólicos (gás carbônico, água, uréia), e uma parte da energia também é perdida sob a forma de calor não-recuperável (um dos constituintes do “calor-extra”), pois o rendimento destas transformações não é cem por cento. Assim, o organismo retira sua energia da oxidação da matéria orgânica dos alimentos, mas com uma eficiência variável, dependendo de sua natureza.
Como o organismo produz a energia a partir dos alimentos ?
Os alimentos contêm uma quantidade variável de energia, medida pela oxidação total em uma bomba calorimétrica: a energia bruta pode ser considerada como sendo o conteúdo energético potencial do alimento.
Este valor varia dependendo do nutriente: 9,4 kcal para os lipídeos, 4,2 para os carboidratos e 5,4 para as proteínas.
A digestão dos alimentos não é total e uma fração desta energia, ou energia digestível, é recuperada. Esta corresponde à energia bruta subtraída das perdas fecais e está relacionada à digestibilidade própria dos componentes alimentares (esquema 1).
Ao longo deste processo da digestão e de utilização metabólica, o organismo gera subprodutos sob a forma de gás e uréia. Os gases (hidrogênio ou metano) são produzidos pela atividade da microflora bacteriana da região do ceco e cólon e representam perdas de energia desprezadas pelos carnívoros. A urina contém subprodutos nitrogenados do organismo, dentre eles a uréia, formada através da desaminação das proteínas. Elas apresentam um valor energético residual, perdido pelo organismo. Esta perda representa de 2 a 10 % da energia bruta, dependendo do teor em proteínas da dieta.
A consideração destas perdas relacionadas à produção de gás e de urina define a energia metabolizável, que é utilizada classicamente como base para predizer o valor energético dos alimentos para carnívoros. Esta energia é disponibilizada pelas células para produzir ATP. A última etapa das transformações é, portanto, a produção de energia líquida (ATP), ou energia metabolizável subtraídas as perdas extra-calóricas. A energia extracalórica corresponde à energia dissipada sob a forma de calor pelo organismo (energia nãorecuperável), tendo por origem principal as reações bioquímicas celulares e o trabalho relacionado à digestão (motricidade).
O rendimento energético real varia de acordo com o nutriente
A célula produz a energia a partir de três grupos de nutrientes: os carboidratos, os lipídeos e as proteínas (esquema 2). Quando o organismo funciona normalmente, a principal via de degradação dos carboidratos é a glicólise aeróbica. A glicose, produzida principalmente a partir da digestão do amido, é primeiramente transformada em piruvato, depois em acetilcoenzima- A (A-CoA), que entra no ciclo de Krebs, onde é totalmente oxidada.
Balanço
As reações de degradação da glicose pela glicólise geram 2 moles de piruvato, depois 2 moles de acetil coenzima A, bem como 4NADH e 2 ATP, ou seja, no total 14 ATP. (A oxidação total de um mol de acetil coenzima A no ciclo de Krebs produz 12 moléculas de ATP).
Os ácidos graxos provenientes da hidrólise dos lipídeos são degradados através da oxidação (ou hélice de Lynen), após transferência para as mitocôndrias graças à carnitina. Também é produzida uma molécula de acetil CoA, que entra no ciclo de Krebs.
Balanço
Cada “volta” da hélice de Lynen libera outra molécula de acetil CoA, 5 ATP. A molécula de acetil CoA oxidada no ciclo de Krebs produz 12 ATP, que se juntam àqueles produzidos pela oxidação, ou seja, 17 ATP no total.
A oxidação dos aminoácidos provenientes da digestão das proteínas desencadeia várias reações que isolam a cadeia carbônica, fonte potencial de energia. Há duas etapas anteriores à utilização da cadeia carbônica dos aminoácidos: uma descarboxilação seguida de uma desaminação oxidativa (esquema 3). O balanço energético destas duas transformações é nulo para a célula. O catabolismo da cadeia carbônica liberada depende depois dos aminoácidos considerados (esquema 4).
Alguns aminoácidos, classificados como “glicoformadores”, entram no ciclo de Krebs, seja sob a forma de um precursor (arginina, valina, glutamina, tirosina e fenilalanina), seja após transformação em piruvato (alanina, serina, cisteína). Outros animoácidos são chamados “cetogênicos”, pois eles aumentam o pool de A-CoA (isoleucina, leucina, triptofano) ou de acetoacetil CoA (leucina, lisina, tirosina, triptofano).
Os aminoácidos podem também contribuir para várias vias metabólicas como, por exemplo, a tirosina e a fenilalanina que, por sua vez, produzem fumarato e acetoacetato.
Paralelamente, a produção de uréia (ciclo da uréia) ligada à desaminação dos aminoácidos é uma reação que consome energia, pois ela utiliza 4 moléculas e ATP e uma molécula de NADH
Balanço
Dependendo da natureza da cadeia carbônica e da via metabólica seguida, a oxidação de um aminoácido produz entre 12 e 22 moléculas de ATP, mas a síntese de uréia simultânea gasta 3,5 ATP, contabilizados no balanço energético final.
Um aspecto na expressão das necessidades
As unidades definidas em energética permitem medir um fluxo a um nível dado : portanto, a maneira mais precisa de medir o fluxo de energia utilizável pelo organismo é colocarse no último nível, a célula. Assim, a unidade de energia ideal é a energia líquida (EL), cuja medida é difícil, uma vez que ela supõe a medida do “calor-extra” produzido pelos animais (esquema 1). Por razões de comodidade, a energia metabolizável (EM) foi escolhida como unidade de referência para várias espécies animais monogástricas, nos quais as perdas por “calor-extra” são limitadas. Entretanto, este modo de expressão da energia pode super-estimar o valor energético real de alguns alimentos (utilizável sob a forma de ATP pelas células), principalmente aqueles que são muito ricos em proteínas.
Em efeito, estudos realizados em animais de criadouro (principalmente suínos)
evidenciaram que a eficiência das proteína é nitidamente inferior à dos carboidratos ou dos lipídeos para a engorda ou a manutenção.
Conseqüentemente, a eficiência global da EL dos alimentos diminui conforme o teor nitrogenado dos alimentos aumenta. Assim, o rendimento em energia líquida de um alimento é de 75% quando o teor protéico d alimento é de 10%, mas não ultrapassa 63% quando o teor nitrogenado ultrapassa 50%.
Para explicar esta diferença, é preciso retornar à bioquímica: a partir das vias bioquímicas, representadas simplificadamente na figura 2, é possível calcular o rendimento em ATP de cada nutriente. Tomemos o exemplo de uma cadeia carbônica de 6 átomos de carbono para carboidratos, lipídeos e proteínas : o número de moles de ATP para 100 g de carboidratos, lipídeos e proteínas oxidadas é, respectivamente, de 21, de 29 e de 9 a 17 ATP.
Observa-se que há uma nítida hierarquia entre os lipídeos, carboidratos e proteínas (tabela 1). Esta diferença deve ser considerada para avaliar mais precisamente o valor energético calculado para os alimentos.
Assim, o rendimento energético líquido de cada um destes nutrientes expresso sob a forma de equivalente calórico é o seguinte: 8,2 kcal/g para os lipídeos, 3,2 kcal/g para os carboidratos, 2,2 kcal/g para as proteínas (tabela 1).
Tabela 1 : valor energético dos nutrientes em cada etapa do esquema de degradação da energia.
Olhar o fornecimento energético sob este ângulo modifica a apreciação que se pode ter de um alimento em função de sua composição. Consideremos dois alimentos de mesmo valor energético no sistema normal de referência, o sistema “energia metabolizável”(esquema 5).
O alimento A fornece 375 kcal EM distribuídos da seguinte forma : 5 % de lipídeos, 70 % de carboidratos e 25 % de proteínas.
O alimento B fornece também 375 kcal EM, mas sua estrutura é diferente: 5 % de lipídeos 45 % de carboidratos e 50 % de proteínas.
O organismo valoriza somente a energia líquida (EL). Assim, neste novo sistema energético (EL), o alimento A fornece somente 320 kcal e o alimento B, 295 kcal, o que representa uma diferença de 10% e uma diminuição de mais de 20 % em relação ao valor estimado no sistema EM.
Conclusão
O sistema de unidade utilizado atualmente – baseado na energia metabolizável – não permite conhecer precisamente a quantidade de energia fornecida ao organismo. O conhecimento dos mecanismos celulares de produção de energia mostram, que os nutrientes que tem o pior rendimento energético são as proteínas, em virtude de vias de degradação complexas, que levam a uma menor produção líquida de ATP. Assim, as dietas contendo uma maior proporção de nitrogênio são as menos favoráveis à engorda. Em uma dieta hipoenergética, associados a uma restrição energética global, os alimentos de maior teor protéico, além de seu efeito na conservação da massa magra (muscular), terão realmente a melhor eficiência em termos de emagrecimento.
Fonte